Meu encontro com Clarice
- dulcescalzilli
- 20 de mai.
- 2 min de leitura
Depois de muita insistência, consegui que Clarice fosse encontrar comigo.
Foi bem difícil, afinal de contas, era Clarice Lispector, uma pessoa tão circunspecta e não dada a entrevistas e conversas com estranhos. Eu era uma completa estranha para ela, mas ela foi alguém com quem dialoguei muitas vezes.
O lugar escolhido, primeiro, foi um lugar aberto, um parque, num dia que eu tivesse a graça de a previsão do tempo acertar e o dia estivesse ensolarado, muito claro, e haveria um lago em cuja beira nos sentaríamos. Mas depois achei que um lugar assim, ao qual ela não parecia acostumada, fosse fazê-la sentir-se tão livre, relaxada e feliz, que seus pensamentos sairiam voando, e se juntariam aos pássaros que passavam aos bandos por ali. E eu me vi correndo atrás dos seus pensamentos, das suas palavras agora soltas no ar, como se fossem balões coloridos, eu aflita a tentar pegá-los, capturá-los, trazê-los de volta.
Não, eu não faria isso comigo, eu precisava dos seus pensamentos, talvez mais até do que ela. Pensando bem, não seria nada difícil para ela produzir novos pensamentos logo a seguir, e eu perderia a oportunidade de conhecer alguns, por alguns breves momentos.
Então, egoisticamente, escolhi um lugar fechado. Uma pequena livraria, um sebo, cujo proprietário eu conhecia, e que concordou em fechar o espaço ao público durante o tempo em que estivéssemos lá.
Pensei que num ambiente assim, cheio de livros, ela se sentiria mais à vontade. Uma máquina de escrever, uma Olivetti verde que guardo até hoje, e um cinzeiro.
Era um espaço pequeno, uma parede com uma porta, outra com uma janela, as outras duas com estantes até o teto, cheias de livros. Como era um sebo, muitos dos livros tinham uma cor amarelada, fazendo um tom monocromático com a luz sépia daquele dia ensolarado de outono. O ar estava cheio de um pó finíssimo, que bruxuleava e ao qual, imaginei, se juntaria a fumaça do cigarro de Clarice.
Olhei o relógio, estava na hora, e no mesmo instante Clarice aparece na porta, já com o cigarro aceso, olhou para mim e, sem dizer nada, sentou-se na cadeira que eu havia colocado diante da mesa.
Paralisei. Emudeci. Travei.
Clarice, agora me parecendo muito à vontade, colocou uma folha na máquina e simplesmente começou a escrever. Foram poucos instantes, até que se levantou, me olhou novamente e desapareceu pela porta, sem nada dizer.
Fui correndo até a máquina, tirei a folha e li: “Obrigada por não falar nada e, principalmente, não me perguntar nada. Foi a entrevista mais respeitosa que já me fizeram. É só isso que preciso para ser feliz: um lugar onde possa palavrear comigo mesma, sonhar acordada, ler até os livros fechados, e deixar meus pensamentos voarem livremente para fora da janela.
Olhei para fora e vi balões coloridos voando...

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